quinta-feira, 2 de junho de 2016

MÚSICA NA PERSPECTIVA REFORMADA - A SIMPLICIDADE E A MODÉSTIA NA ESTÉTICA E PERFORMANCE MUSICAL

Pintura de J. Vermeer (1665) que representa claramente o espírito
da arte renascentista que influenciou os neoclássicos
por meio da simplicidade sem perder a sofisticação  também
aplicada pelos reformadores na música. 
Nos artigos anteriores a este, verificamos os dois primeiros critérios aplicados a música de forma geral no pensamento reformado. O primeiro critério é que tudo deve passar pelo crivo da glória de Deus. a música deve ser produzida com o objetivo de destacar a beleza e a majestade de Deus como sinal de gratidão e adoração a Ele. 

O segundo critério é o crivo da Escritura, ou seja, toda música deve ser cantada e tocada a partir do conteúdo e da autoridade da Palavra de Deus. A Bíblia é a referencia absoluta para que todas estas musicas glorifiquem a Deus. 

O terceiro critério claramente verificável é que tudo deve ser feito com modéstia e simplicidade. Para os reformadores a questão da forma e da estética a música não era o ponto central. Os reformadores sempre se preocuparam mais com o conteúdo que se produziu em suas obras artísticas, especialmente quando usam o recurso direto e explícito da linguagem e da palavra escrita como é o caso da música, a literatura e o discurso.  

Eu me arrisco a dizer que em três séculos (do séc. XVI ao XVIII), tanto os nossos primeiros pais na reforma como os seus ancestrais, se dedicaram mais a escrever e falar do que até mesmo compor música. Os nossos pais puritanos por exemplo, foram hábeis teólogos, literários, juristas, romancistas, economistas, os precursores da chamada educação moderna.

Mas, no campo da música, foram tão habilidosos quanto em outras áreas. Produziram  incontáveis composições sendo que muitas delas ficaram no anonimato. Exatamente porque os nossos pais puritanos produziam suas músicas para o seu uso cotidiano e comunitário. Este inclusive, é um dos primeiros aspectos que claramente nos mostram o quanto eram discretos, não eram dados ao desejo do prestígio artístico e muito menos gananciosos. Não viam a arte como um mercado, mas como uma dádiva de Deus para o seu deleite pessoal e espiritual. 

Talvez, eu consideraria este o motivo de não encontrarmos um rico acervo neste ramo artístico em relação aos reformados dos séculos passados. Contudo, não se pode negar que há um incontável acervo de hinos e cânticos metrificados de textos bíblicos especialmente os salmos. Nossos hinários são a prova clara disto. 

Mas, ainda é importante destacar que alguns grandes compositores se destacaram não como ídolos, mas, como as mentes pensantes da música. Por exemplo, desde o século dezesseis que estes gênios da música ocidental viveram sob a influência da cosmovisão reformada como Clément Marot, Luis Bourgeois, Johan Sebastian Bach, seu filho Johan Christian Bach e George Frederick Handel. A música barroca protestante é um resultado disto. 

Sito aqui dois compositores e poetas que musicalizaram os hinos do conhecido Saltério Huguenote, ou, como mais tarde por iniciativa de Calvino e Teodoro de Beza, foi compilado o saltério de Genebra por Clément Marot e Teodoro de Beza que até os dias de hoje é usado por diversas congregações reformadas e presbiterianas espalhadas pelo mundo.

Marot e Beza sempre presaram por melodias mais simples, modestas, que fossem de claro e fácil entendimento da congregação, com tonalidades acessíveis para que todos pudessem cantar com vigor e entusiasmo. Nas congregações calvinistas, não era comum o canto polifônico (com divisão de vozes como no caso dos luteranos e anglicanos) mas todos cantavam em uníssono no intuito de que os arranjos não chamassem mais a atenção do que aquilo que estava sendo cantado, ou, por vezes acompanhado de instrumentos musicais.

A simplicidade na expressão artística não foi uma novidade para os reformados. Provavelmente foram influenciados pela mentalidade medieval antiga (que foi do século VIII até XII) como também pelo renascentismo que teve seu início em meados do século XV. A máxima que dizia; "quanto mais simples, mais sofisticado" provem exatamente de um artista renascentista - Leonardo Da Vinci que disse: "A Simplicidade é o ultimo grau de sofisticação"

Isto, já nos dá uma excelente lição de como devemos lembrar que, a simplicidade não significa superficialidade, pelo contrário, o adorno de toda obra não pode ser apenas o que a grada o nosso gosto. Por isso que na música todo o cuidado é pouco no que diz respeito a arranjos musicais, o uso de instrumentos e vozes adequadas para se tocar e cantar uma música. Mais ainda, este critério é muito bem explicitado quando se trata do culto solene. É possivel verificar o quanto, ao mesmo tempo a simplicidade das musicas e dos hinos reformados também eram em certa medida de um alto padrão e de uma riqueza e complexidade artística impressionante.   

No que diz respeito a isto, dois nomes se destacam em suas performances eruditas – J. Sebastian Bach e G. Frederich Handel. Em especial, Bach, não era estritamente reformado e sim luterano, mas por influencia da reforma protestante, foi considerado um dos maiores precursores da chamada música ocidental moderna. Bach é um marco ou um divisor de águas na história no que diz respeito à música. A partir dele que a universalização da linguagem musical se concretiza no século dezesseis, e suas obras se tornaram referência até os dias de hoje nos estudos, técnicas e teorização em diversas áreas da música moderna e contemporânea.

Se costuma dizer que Bach por ter desenvolvido com tanta precisão e riqueza a chamada harmonia funcional e a possibilidade de criar frases melódicas como harmônicas sem necessariamente seguir a partitura (o dito improviso) é o pai do Country, do jazz, blues, Rock, me arrisco a dizer (se é que alguém já não disse) da Bossa-nova, do Samba, etc.  

Contudo, Bach não compunha peças grandes. A grande maioria de suas músicas foram encomendadas semanalmente pelas igrejas protestantes (em sua maioria luteranas, mas também, calvinistas). Bach não usava grandes orquestras e coros sinfônicos. Pelo contrário, os números máximos de cantores em suas performances não passavam de 8 à 10 componentes. Seja pelas condições monetárias limitadas, mas também por uma questão de opção já que Bach não queria saturar ou desfigurar os cultos dominicais com tantos instrumentos e vozes.

Isto nos mostra que os reformadores não desprezaram os adornos externos destes recursos. Eles entendiam claramente que as modalidades e a estética eram instrumentos poderosos na comunicação de seu conteúdo. Tão poderosos que realmente deveriam ter todo o cuidado em não abusar de tais recursos e técnicas.

Eles não eram contra a beleza e a alegria das coisas, mas, eram muito cuidadosos com os exageros, as extravagâncias e as trivialidades que poderiam predominar nas músicas sejam elas tocadas e principalmente cantadas. Tais cuidados eram motivados pelo desejo de que o entendimento e a razão não fossem ofuscados pela beleza estética em si mesma. Se isto acontece no momento do culto, perigosamente toda a congregação reunida em assembleia este em grave pecado contra Deus e a sua Palavra.

É importante lembrar o quanto os reformados tem a preocupação de que não se venha ferir o Princípio Regulador do Culto no uso da música na adoração pública. A estética musical deve ser a mais simples possível, mas sem perder a sua beleza e a sua sofisticação. Um compositor deve ser capaz de discernir qual é o ponto em que sua música deve estar em todas as suas respectivas partes para que ela não se torne uma um peso em si mesmo ou, um ídolo em nossa própria imaginação. 

Até o próximo artigo desta série.